Na década de noventa, na pequena cidade de Jaboatão dos Guararapes no estado de Pernambuco, os rapazes e meninos da classe media local, eram diferentes dos adolescentes e jovens paulistanos com quem eu sempre me relacionara e havia me acostumado. Além de mais simples e corajosos, possuiam em sua essência caiçara, a malandragem das periferías, somada ao cheiro de sal do mar em suas peles queimadas e em seus cabelos duros, por vezes parafinados ou simplesmente curtos, quando não raspados.
A essência machista e debochada desses garotos competitivos, que passavam o dia na praia de Piedade, era o que mais seduzia as meninas locais, que todas as manhãs se reuniam em frente á barraca do Gordo, um comerciante rude e ignorante, dono de um pequeno bar improvisado entre madeiras, telhas e os restos de um trailer, onde moravam com ele esposa e filha. Sua esposa era uma pessoa simples, de cabelos encaracolados e curtos, olhos claros e simplorios, cheios de piedade e devoção. Por não possuir os dois primeiros dentes permantes da parte superior de sua boca, os jovens e frequentadores do local a chamavam de “Milliúm”. (1001). Pois o desenho de sua estrutura dentaria quando sorria, formava, “um, zero, zero, um” entre os dentes que tinha e os que não.
A filha do casal era gorda, e não devia ultrapassar quinze anos de idade. Contra sua vontade e a mando do pai e da mãe, realizava o trabalho de garçonete do bar, que era na areia da praia, praticamente sozinha e sempre com a cara fechada, de mau-humor, espantando por diversas vezes os turistas que se sentiam mal tratados e mal atendidos pela adolescente calada e insatisfeita. Esses então iam beber e comer nos bares vizinhos e concorrentes, deixando assim que o bar do Gordo fosse frequentado apenas pela turma local que ali havia crescido.
Era depois das onze horas da manhã que os jovens e rapazes daquela turma, chegavam para seu banho de mar e para paquerar as meninas que ali se econtravam desde as nove, tomando sol e conversando sobre os eventos da noite anterior, sobre os possíveis romances e azarações.
A maioria desses jovens estava sempre de ressaca, pois o consumo de cerveja e a resistência para as misturas de cachaça, royphinol, maconha e destilados, era de impressionar qualquer sujeito resistente e adepto as alterações de frequência do sistema nervoso e cerebral. A receita para curar a rebordosa do dia anterior era sempre a mesma; Um mergulho generoso no mar de Piedade e um gelado copo de cerveja acompanhando um café da manhã pobre em nutrientes e ricos em calorias, materializados em queijo qualho assado na brasa, amendoim torrado ou cozido, ovo colorido, torresmo, e sanduíches que eram preparados pela “Milliúm”, na chapa enferrujada, velha e suja de gordura que havia no bar do gordo.
Devido ao seu alto teor oleoso e as azias muitas vezes provocadas em alguns, esses sanduíches tinham o apelido de “Chernobíll”, fazendo um paralelo com o acidente radioativo que havia ocorrido na década de 80, na respectiva cidade da antiga e extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Como em todas as turmas e grupos, entre esses jovens, meninos e meninas, havia os mais carismáticos, os mais valentes, os menos queridos, aqueles que eram de fora, de outros bairros, os que haviam crescidos todos juntos, estudado nas mesmas escolas e tido as primeiras experiências sexuais, sociais e culturais mais ou menos na mesma época. Eram esses jovens e adolescentes conhecidos e chamados como: Emersinho, Beto Legião, GT, Jorge Cabelera, Dinho, Edmário, Juno Bala, Léo Mala, Léo Cana, Bú, Valpertan e muitos outros nomes e apelidos diferentes, que tentavam definir a personalidade de seus respectivos donos. Suas idades variavam entre quinze e trinta e poucos anos, com a excessão de Valpertan que atingia a casa dos quarenta. Ainda assim a maturidade espiritual entre todos era a mesma e a energia que fluía predominantemente, era de competição, deboche, sarro, solidariedade, machismo e entorpecimento.
Entre as gurias havia Carol, Valéria, Duguinha, Viviane, Barbinha, Dianne, Camila, Peggy, Kilmara, Kiúcha, e muitas outras que faziam da turma de garotas da praia de Piedade, famosa em toda Recife e principalmente na praia de Boa Viagem.
De todas as coisas que as pessoas aqui descritas neste conto gostava, a que mais alimentava seus anseios e excitavam seus sentidos primais era o Carnaval. O que ocorria do mês de abril ao mês de novembro, não significava nada em comparação com o que acontecia em seus corações e mentes a partir do mês de dezembro e durava até as primeiras semanas de março. Embalados pelo ritmo do reggae, do frevo, do maracatu e do manguebeat que acabara de ser criado por Chico Science e seus amigos, os jovens pernambucanos se nutriam de preconceitos e maldizeres com o crescimento do carnaval baiano e ritmos como Axé e Samba. A turma de Piedade parecia entrar em transe nessa época do ano e não havia provas escolares, recuperação de verão ou castigo imposto pelos pais que os impedissem de fazer parte desse frenesi coletivo, que nos demais estados fora do nordeste, acontecia durante apenas 4 dias. Até porque a grande maioria desses jovens, estudava apenas até a quinta série ginasial, quando muito faziam o colegial e desistiam da busca de conhecimento acadêmico nos primeiros anos da juventude, em nome dos prazeres sensoriais que desde criança tomavam posse e se sentiam descobridores e proprietários.
Eram três meses de “arreação”, bagunça e libertinagem sem limites. Os rapazes faziam questão de romper seus namoros para saudar a chegada do carnaval sem compromisso, solteiros e disponíveis. Fato esse que não os impedia de terem crises de ciúmes, chegando por vezes ao extremo de agredir fisicamente suas “namoradas” que também pretendiam aproveitar o festival carnal que acontecia no interior e exterior de cada ser que ali habitava.
Com as festas de carnaval a partir de dezembro e o grande aumento do turismo nas regiões de Recife, Olinda e na praia de Boa Viagem, os hotéis de luxo ficavam cheios e os moradores locais, comerciantes e ambulantes de Jaboatão e região, ganhavam mais dinheiro e assim ficavam felizes. Juntamente com isso cresciam as vendas ilícitas e as ocorrências de roubos, vandalismos, violências de variados tipos que apesar de sérias e muitas vezes irreparáveis, não tinham força o bastante para afetar a alegria do carnaval e seus pacotes de nocividades e sensações frenéticas.
Foi uma fase de prosperidade para todo o Brasil, inclusive para Bú e “Marcelo Loko” que naquela tarde, graças a Emersinho, pois esse emprestara a arma calibre 45 de seu pai, puderam com a ajuda de “Geraldo Caveira” assaltar todos os postos de gasolina e pelo menos duas farmácias que iam do bairro de Candeias, até a divisa de Jaboatão dos Guararapes e a praia de Boa Viagem, em Recife.
Pequeno não foi o seu espanto quando ao se aproximar da movimentação do local, pôde ver seu amigo de infância, Valpertan, algemado no banco detrás da viatura, com os olhos inchados e cheios d’água. Sentiu um peso enorme dominar-lhe a região de seu chacra laríngeo e uma vontade enorme de fugir, ao mesmo tempo em que queria tirar seu amigo de lá. Porém ja era tarde e Valpertan o reconhecera devido ao corpo esguio e magro. Seus olhos se fitaram por poucos instantes, até que Marcelo despertasse para a gravidade da situação e em passos largos e rápidos retornasse para o bar do Gordo na praia.
Ainda assim, Valpertan cumpriu pouco mais de dois anos de reclusão em regime fechado, sem jamais revelar a identidade de seus amigos de infância. Tempos depois, nunca mais voltei a Pernambuco, e soube pelos raros contatos que tive depois de minha volta para São Paulo, que a turma de Piedade nunca mais existiu, ou jamais foi á mesma.
Ruy Mendes – 23 de abril de 2007
R.M. Médico Animósico - Novembro de 2009
OLá.
ResponderExcluirGostei do blog. Seu trabalho trata do ser humano em sua essência, reforçando seus pontos positivos e melhorando os negativos. Creio que a solução para nosso mundo não está no meio, mas em nós. Trabalhar cada pessoa como única é uma boa solução. Se cada um de nós for agetne de mudança, o mundo mudará, consequentemente.
Abraço!
kara desculpe mas é muito empenho ler tudo isso ,nao tenho muita cultura para ler ,mas mesmo assim parabens pelo esforço
ResponderExcluirObrigado pelas descrições e feeling.
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